Tales
de Mileto dizia: “tudo é água”.
Para
Tales, essa substância, a physis,
seria a água, e todos os seres existentes seriam, essencialmente, produtos da
transformação da água ou água transformada.
Segundo
Nietzsche, em Tales, o pensamento salta das constatações para a abrangência do
espírito, em que a grandeza do olhar conceitual define a filosofia como audácia
do pensamento. A água de Tales não passa de uma metáfora para comunicar o
“pressentimento da solução última das coisas” e “o acanhamento dos graus
inferiores do conhecimento”.
Já,
para Hegel, Tales celebra a descoberta da unidade do ser e a unidade do
pensamento: “só há um universal, o universal ser em si e para si, a intuição
simples e sem fantasia, o pensamento de que apenas um é”. Na verdade, Hegel lê
na proposição “tudo é água” o significado “tudo é um”. Por isso a frase é
filosófica, isto é, progresso em relação à dispersão do pensamento mítico ou da
percepção sensível que vêem o mundo como uma multidão de coisas diferentes,
longe de qualquer unidade. Por outro lado, Tales não teria razão em escolher a
água como o universal, uma vez que ela é evidentemente uma coisa singular:
“aqui está a falha - aponta Hegel; aquilo que deve ser verdadeiro princípio não
precisa ter uma forma unilateral e singular”.
Em
suma, até a filosofia, ao interpretar a frase de Tales, empenha-se no elogio do
pensamento racional presente no “tudo é”, e acaba geralmente por desconsiderar
a água enquanto tal. Mas o desafio da frase consiste no predicado “água”. Ao
invés de celebrar na primeira frase filosófica o que caracteriza a filosofia
enquanto filosofia - a atividade autônoma do pensar -, talvez devamos procurar
compreender a água enquanto água.
Natureza e Pensamento Humano
Michel
Serres: “Nossa cultura tem horror do mundo (...) A terra, as águas, o clima, o
mundo silencioso, as coisas tácitas colocadas outrora como cenário em torno das
representações comuns, tudo isso que jamais interessou a alguém, brutalmente,
sem aviso, de agora em diante estorva as nossas tramóias. Irrompe em nossa
cultura - que dela sempre formou uma idéia local e vaga, cosmética - a
natureza”.
Água e a Vida
Todos
os dias lavamos os olhos, as mãos, tomamos banho, tudo isto não com a convicção
de estarmos cumprindo um conjunto frio e objetivo de preceitos de higiene, mas
com uma certa sensação vaga e fugidia de prazer. Esta água caseira, que sai da
torneira e do chuveiro, não só nos limpa, mas também nos conforta.
A
água é essencial para a conservação da ordem doméstica, tanto na limpeza da
habitação, quanto no molhar as plantas, na lavagem das roupas, no preparo dos
alimentos, na condução dos dejetos corporais e outros, etc., etc.
A
água é um elemento fundamental para a garantia de nossa vida biológica, de
nossa natureza exterior.
Todo
ser vivo consiste principalmente de água.
Nosso
corpo contém cerca de 65% de água. O mesmo acontece com os camundongos. Um
elefante e uma espiga de milho contêm cerca de 70% de água. Um tomate contém
cerca de 95% de água. Todas as funções orgânicas (digestão, circulação do
sangue, respiração, excreção urinária, transpiração, etc.) exigem a renovação
rápida da água contida nas células ou nos líquidos intercelulares.
Por
meio de reações químicas, o organismo converte os nutrientes em energia, ou em
materiais de que precisa para crescer ou reconstituir suas partes. Essas
reações químicas só podem ocorrer em uma solução aquosa.
O
meio aquoso é também necessário para os processos de reprodução da vida. O
sêmen, o útero materno contêm água e o feto desenvolve-se primeiramente num
meio aquoso.
A
história nos revela que em geral os homens se estabelecem onde a água é
abundante - junto aos lagos e rios. As primeiras grandes civilizações surgiram
nos vales de grandes rios - Vale do Nilo no Egito, Vale do Tigre/Eufrates na
Mesopotâmia, Vale do Indo no Paquistão, Vale do Rio Amarelo na China. Todas
essas civilizações construíram grandes sistemas de irrigação, tornaram o solo
produtivo e prosperaram.
Toda
a vida urbana, toda cidade, depende de um sistema de abastecimento de água e a
tarefa de abastecer de água uma cidade é gigantesca. Em primeiro lugar a água
tem de ser captada dos mananciais (lagos, rios ou água do subsolo), em seguida
tem de sofrer todo um processo de tratamento pelo qual é purificada e tornada
apropriada ao consumo. Depois passa por um sistema de distribuição e finalmente
um sistema de esgoto conduz - ou melhor, deveriam conduzir as águas servidas
para estações de tratamento que as devolvem (sem tratamento) para rios ou para
o mar.
Em
nossas cidades, as casas têm torneiras na cozinha e caixa de descarga na
privada. A média de água gasta por pessoa, no lar, é de cerca de 250 litros por
dia. Numa descarga de água no vaso sanitário, gastam-se de 10 a 12 litros. Para
tomar um banho são necessários mais ou menos 120 litros, calculando um chuveiro
médio com vazão de 20 litros de água por minuto. Para lavar pratos e panelas,
são precisos uns 40 litros, e até 110 litros para a máquina de lavar roupa.
A
água é material mais usado pela indústria. São necessários cerca de 270
toneladas de água para fabricar um tonelada de aço, e cerca de 250 toneladas de
água para produzir uma tonelada de papel. As refinarias usam cerca de 10 litros
de água para refinar um litro de gasolina; para fabricar um litro de cerveja,
usam-se 10 litros de água. As fábricas no Brasil usam cerca da metade da água
consumida em geral no país, retirando-a de poços, rios ou lagoas.
Que
se lembre também a importância da água na produção da energia elétrica, pelas usinas
hidrelétricas, e a importância dos rios e mares como meios de transporte.
E,
juntamente com os fins do século XVIII, a água passou a ser, para a nossa
cultura, apenas uma expressão: H2O, ou seja: um corpo incolor, inodoro,
insípido, líquido à temperatura ordinária, resultante da combinação de um
volume de oxigênio e dois de hidrogênio e capaz de refratar a luz e dissolver
muitos outros corpos. Depois que a água tornou-se objeto da razão científica,
passou a ser um corpo entre os outros, muito importante, é certo, mas sem alma,
sem sentido, uma coisa morta.
(fragmentos do texto “A
Água e a Vida” de José Carlos Bruni)
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