O
sistema de valores e as crenças que norteiam a época em que vivemos, o século
XXI, se constituíram a partir do século XVI e XVII. As ideias dessa época
formaram a percepção e as dinâmicas culturais que caracterizam as bases do
pensamento científico moderno.
O
séc. XVI inaugura grandes inovações nas áreas do conhecimento científico e
filosófico devido, principalmente, às reviravoltas sociais da época: a Reforma,
no âmbito religioso, que contesta os dogmas da Igreja e, consequentemente, a
unidade do Estado, uma vez que religião e política eram os pilares da coesão
social europeia. As grandes navegações, que propiciaram a abertura a novos
mundos, daí o choque de “concepções de mundo”, o estranhamento perante à alteridade
(a diferença, o outro), que introduziram no seio dos costumes europeus
vivificados pela tradição, a diversidade e o questionamento. O clima em todos
os campos, religioso, político, científico, era de insegurança e ceticismo; enquanto a dúvida generalizada
propiciava, entre outros rumos, aos intelectuais da época, um movimento de
“retorno” à antiguidade greco-romana, como forma de contrapor aos valores da
Idade Média.
É
nesse caldo de incertezas, contestações e questionamentos que começou a se
delinear, já no final do século XVI, o que seria considerado como novo
paradigma do conhecimento, inaugurado como marco do pensamento moderno: o ideal
de unificar e universalizar o saber, dando-lhe um caminho reto, a busca da
verdade, legitimada, por sua vez, no rigor do método científico. Por um lado,
Francis Bacon (1561-1626) anunciava a garantia do conhecimento pela via
empirista (ordenação da experiência para se chegar à certeza da sua
verificabilidade) e Descartes (1596-1650) iniciava o racionalismo moderno,
elegendo a Razão como condição sine qua
non de alcançar a verdade na Ciência.
Já
não era mais possível aceitar a concepção medieval do universo, a qual
remontava à Antiguidade, principalmente a Aristóteles. Para Aristóteles, na
Antiguidade, e para os herdeiros da sua tradição na Idade Média, a exemplo, de
São Tomás de Aquino, a concepção da Física envolvia toda uma cosmologia, pois
ao explicarem noções como forma/matéria, ato/potência incluíam aspectos que
extrapolavam um esquema meramente mecanicista. Assim, o universo era
estruturado em torno do núcleo central substância, uma vez que almejavam
conhecer a essência das coisas. No entanto, há que se entender primeiro como se
constitui a noção de substância no sistema aristotélico. Para ele, “toda
substância compõe-se de forma e matéria, e a forma é precisamente o ato que faz
com que a substância exista de maneira determinada” (Franklin Silva). É,
portanto, na ênfase da forma que cada substância adquire que Aristóteles
estruturava o Cosmos, enquanto ato constitutivo das substâncias que dava ao
universo sua principal característica: a de mudança, movimento, diversidade.
É
importante observar que a principal característica da natureza do Cosmos, (da
qualidade enfim) para Aristóteles é a de movimento, mudança, diversidade. Dois
importantes aspectos decorrentes desta ênfase:
ter
o princípio de movimento é ter o princípio da vida;
o
princípio de movimento ou forma substancial do Homem[1]
é a alma.
Se
a física aristotélica apresenta uma ligação entre o físico e o psíquico, a
física de Descartes provoca a cisão entre estas partes. Ao tomar como modelo o
método dos geômetras elaborado por Galileu, Descartes separa definitivamente a
quantidade da qualidade, o corpo da alma. Essa separação tem de imediato duas
implicações:
Primeiro,
no âmbito dos fenômenos físicos. Uma vez já destituídas do aspecto qualitativo,
as categorias extensão, movimento e figura se adequarão perfeitamente à leitura
de uma realidade vista como homogênea: o que importa é a relação quantitativa
das extensões. O universo não é abordado na sua pluralidade, como observamos em Aristóteles. O
universo é agora, medido e ordenado segundo os princípios matemáticos, visto
como um grande mecanismo. Vale lembrar as palavras de Ivan Domingues, que
descreve tão bem a imagem de homem que cabia neste universo desprovido de
qualidades: a antropologia do Homem-Máquina.
Segundo:
é em decorrência da separação entre substância extensa e substância pensante,
entre corpo e alma, que Descartes vai fundamentar o conhecimento, este, agora,
podendo se erigir a partir do pensamento.
O
pensamento, com o uso adequado da razão é o único ponto concreto, e que possui
a garantia divina da verdade[2] (visto que Deus
não poderia ser enganador ao colocar nas representações a qualidade de serem
claras e distintas). Com isto fica estabelecida a autonomia completa do sujeito
em relação a qualquer objeto de conhecimento uma vez que é da subjetividade do
“eu pensante” que o processo de saber se inicia. Ou seja, a objetividade se
funda na subjetividade: “Pela realidade objetiva de uma ideia, entendo a
entidade ou o ser da coisa representada pela ideia, à medida que tal entidade
está na ideia (...) Pois, tudo quanto concebemos como estando nos objetos das ideias,
tudo está objetivamente, ou por representação,
nas próprias ideias”[3].
Os
principais aspectos dos termos sujeito e objeto para Descartes:
Sujeito
Autônomo,
princípio ordenador da razão, polo irradiador de certeza, uma vez que para
Descartes o sujeito tem que se estabelecer primeiro como condição de
possibilidade do conhecimento. Vale a pena lembrar as principais
características do cartesianismo e que reforçam a primazia do sujeito em
relação ao objeto: dualismo, idealismo, subjetivismo, representação. “O sujeito
cartesiano, uma vez firmemente estabelecida a sua existência sólida,
substancial, entrou no mundo perfeitamente equipado para conhecer e compreender
esse mundo. O mundo lá estava para o receber e era-lhe cognitivamente acessível”
(Gellner).
Objeto
Não
exerce nenhum papel ativo no processo de conhecimento visto que quem garante
sua certeza é o sujeito. Consequentemente, só é possível ser apreendido como
representação, ideia de, e não por suas características perceptivas,
sensoriais, dada a primazia do intelecto sobre a imaginação e o sentimento.
Ainda assim, é passível de ser considerado como algo inteligível somente dentro
da ordenação e medida do sistema racional científico que garante a verdade
universal.
Dentro
deste caldo da efervescente “Revolução Científica” (como muitos autores
caracterizam as mudanças e rupturas ocorridas a partir do século XVI) uma série
de descobertas que foram feitas no âmbito da astronomia, matemática e,
principalmente, da física, possibilitaram o progressivo abandono do sistema
aristotélico. Representantes dessa “Revolução Científica” foram, por exemplo,
Kepler, Copérnico e Galileu. Este último, ao elaborar uma nova física, pauta-se
na matemática como medida e padrão racional, isto é, para ele “a natureza está
escrita em linguagem matemática” . E é justamente nessa concepção galilaica que
Descartes se inspirará para construir seu objetivo de unificar o saber,
dando-lhe um caráter sistemático: a matemática, e mais propriamente a
geometria, servirá de instrumental eficaz para ler o universo e ordenar as
investigações, servindo de paradigma para o seu método. “Conhecer significa
quantificar. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante. Conhecer
significa dividir e classificar para depois poder determinar relações
sistemáticas entre o que se separou” (Boaventura). A geometria, portanto, lhe
orientou a descobrir a natureza do conhecimento, segundo a ordem e a medida,
tanto quanto lhe inspirava, após a elaboração de sua metafísica, à aplicações
de leis universais e eternas. “Essas longas cadeias de razões, todas simples e
fáceis, de que os geômetras costumam servir-se para chegar às suas mais
difíceis demonstrações, haviam-me dado a ocasião de imaginar que todas as
coisas possíveis de cair sob conhecimento dos homens seguem-se umas às outras
da mesma maneira, e que, contanto que nos abstenhamos somente de aceitar por
verdadeira qualquer que não o seja, e que guardemos sempre a ordem necessária
para deduzi-las umas das outras, não pode haver quaisquer tão afastadas que não
se chegue a ela por fim, nem tão ocultas que não se descubram” (Descartes).
Para
unificar e reconstruir a ciência era preciso um fundamento que serviria de
pedra angular para o edifício cartesiano. A dúvida metódica, sistematizada, tem
a tarefa de eliminar as inverdades para, finalmente, de posse da única certeza
possível, chegar a um terreno sólido. Daí o motivo que predispôs o filósofo a
rejeitar em primeiro lugar, todo e qualquer conhecimento que lhe fora dado pela
socialização, advindos dos costumes e da tradição. A reconstrução do saber é
tarefa de um homem só: René Descartes e deve partir do uso pessoal da razão. E
o que é a razão para ele? Pura intelecção, pensamento, representação. Se, no
âmbito social o primeiro passo foi se livrar das amarras culturais, o segundo
passo, já com o sistema racional em construção, era duvidar também das
sensações. Haja visto o seu clássico exemplo da cera, que por mudar de forma
com o fogo não pode ser apreendida pela percepção. Descartes parte da dúvida,
radicaliza-a e esbarra no ser que duvida: “Penso, logo existo”: “Cogito, ergo
sum”. Uma vez que a única certeza de que dispomos é o pensamento, não nos é
possível chegar aos sentimentos, senão à consciência deles. Aqui ser e
consciência coincidem: se forma o sujeito racional.
Com
a construção do “eu pensante” surge então uma ética antropocêntrica: O Homem é
o centro do universo. Tudo existe unicamente em função dele. O Homem é o centro
de todas as coisas e senhor da natureza. Detentor da razão o Homem a utiliza
para “dominar” a natureza utilizando-se dos instrumentos da ciência. Mauro
Grün, observa que “se a razão é
autônoma, a natureza não pode sê-lo”. Então a natureza precisa ser dominada. A
questão é simples: Como posso dominar alguma coisa da qual faço parte? A
resposta é que não posso; consequentemente, não posso fazer parte da natureza.
Se pretendo dominá-la, preciso me situar fora dela. Assim, o pensamento
cartesiano conseguiu legitimar a unidade da razão às custas da objetificação da
natureza. É na base desse dualismo que encontramos a gênese filosófica da crise
ecológica moderna, pois a partir desta cisão a natureza não é mais que um
objeto passivo à espera do corte analítico. Os seres humanos retiram-se da
natureza. Eles veem a natureza como quem olha uma fotografia.
Segundo
Grün a autonomia do sujeito pensante, livre dos valores da cultura e da
tradição, e sua independência do meio ambiente constituem a própria base da
educação moderna. “O cogito cartesiano é a própria base da educação. Tida como
um ideal educacional por séculos, esta separação entre o sujeito conhecedor (o
eu que pensa) e o objeto (a coisa que é pensada) precisa agora ser repensada. A
crise ecológica, de certa forma, obriga-nos a isso”.
Fernando de Castro Fernandes
Pessoas que ajudaram a pensar/elaborar/escrever esse texto:
- Fritjof Capra com o livro El Punto Crucial - Ciencia, sociedad y cultura naciente, editado pela editora Integral de Barcelona, em 1985. Este livro de Capra pode ser lido na língua brasileira: O Ponto de Mutação.
- Tatiana Maciel fez um bom trabalho chamado Sujeito, Objeto e Linguagem, no Departamento de Sociologia e Antropologia, FAFICH, UFMG, no ano de 1997, como também contribuiu construindo o alicerce de onde partiu esse texto.
- René Descartes, o gênio metafísico, escreveu “Discurso do Método” que pode ser lido na coleção Os Pensadores, Nova Cultural Ltda, S.P.
- Ivan Domingues enriqueceu esse texto com O Grau Zero do Conhecimento, da Edições Loyola, publicado em 1991.
- Forquin nos ajudou a refletir com o bom livro Escola e Cultura. As bases epistemológicas e sociais do conhecimento escolar, editado pelas Artes Médicas de Porto Alegre em 1993.
- Mauro Grün e o instigante livro Ética e Educação Ambiental: a conexão necessária, editado pela Papirus Editora em 1996.
- Franklin Silva com Descartes - A Metafísica da Modernidade, da editora Moderna, publicado em 1993.
- Ernest Gellner com a fina ironia de Razão e Cultura, publicado pela Editora Teorema, em Lisboa, no ano de 1992.
- Boaventura Souza Santos e o precioso Um Discurso Sobre as Ciências, em sua 8 a edição, publicada pela Edições Afrontamento, lá na cidade do Porto, em 1996, nos possibilitou entender melhor o que se chama crise do pensamento moderno e como construir uma alternativa a esse pensamento: “Todo o conhecimento científico-natural é científico-social; Todo o conhecimento é local e total; Todo o conhecimento é auto-conhecimento; Todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum”.
[1]
Homem com a letra h maiúscula, não é apenas para indicar o conceito
antropológico de Homo Sapiens (homens
e mulheres) cunhado pelos humanistas, mas também para reforçar o caráter
estritamente masculino das ideias que organizaram o pensamento moderno.
[2]
Para maior esclarecimento ler sobre dúvida natural e dúvida metafísica no livro
de Franklin Silva.
[3]
Descartes citado por Ivan Domingues.
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